A palavra altar tem pelo menos três significações, a depender de sua origem. Do hebraico, lugar de matança; do grego: lugar de sacrifício; do latim (altare ou altus), plataforma elevada.

Com o passar dos tempos o altar – narrado diversas vezes na Bíblia – foi deixando de ser um lugar de sacrifício e matança para ser um local de adoração, homenagem, respeito e reverência, seja a Jesus, Maria de Nazaré ou qualquer outra divindade que a fé humana professe.
Em quase todos os lares que seguem o catolicismo (religião predominante no Brasil) há um altar montado, desde os mais simples aos mais ornamentados; geralmente compostos por uma mesa, uma toalha branca, imagens de variados santos e objetos típicos da religião (como o terço, velas e a Bíblia).
Sendo este costume marcante na cultura popular brasileira, não podemos deixar de verificar que muitos adeptos do espiritismo – oriundos do catolicismo, sendo hoje ex-católicos – possuem algum tipo de altar em casa, o que não nos cabe julgar se tal prática é correta ou não. Aqui, nos limitamos a apresentar algumas observações a este respeito, deixando ao amigo leitor a liberdade de decidir como proceder em sua intimidade doméstica.
O espírita – estudioso das obras de Kardec – já deve saber que a doutrina dos Espíritos não segue uma base religiosa; isto é, não possui dogmas, cerimônias, rituais, misticismos, privilégios, casta sacerdotal, nem práticas exteriores de adoração, incluindo altares e seus congêneres destinados a esse fim. O Espiritismo é uma doutrina científica e filosófica. Na acepção comum do termo, o Espiritismo não é considerado uma religião, embora possua aspectos religiosos.
RELIGIÃO ESPÍRITA?
Para entendermos com mais clareza esse aspecto religioso presente na doutrina espírita, analisemos com atenção o pensamento apresentado por Kardec na edição de dezembro de 1868 da Revista Espírita.
Ao ser questionado se o Espiritismo era ou não uma religião, Kardec responde:
“Ora, sim, sem dúvida, senhores; no sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos glorificamos por isto, porque é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre as mais sólidas bases: as próprias leis da Natureza."
Dando continuidade a sua linha de raciocínio, o autor complementa:
"Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Porque não há uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e porque, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da ideia de culto; porque ela desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem."
E por fim, arremata o autor:
"Se o Espiritismo se dissesse religião, o público não veria aí senão uma nova edição, uma variante, se quiserem, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; ele não o separaria das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião pública se levantou. Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor as pessoas inevitavelmente ter-se-iam equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.”
Ao ler o texto na íntegra, na qual recomendamos que isso seja feito por parte do estudante espírita, veremos que Kardec argumenta que o Espiritismo é, de fato, uma religião no sentido filosófico, pois une as pessoas em uma comunhão de sentimentos, princípios e crenças, com base nas leis da natureza, promovendo a fraternidade, a solidariedade e o desenvolvimento moral. No entanto, evita o título de religião para não ser confundido com as práticas e formas associadas a cultos tradicionais.
Embora reconheça que o Espiritismo possua aspectos de uma religião – no seu sentido filosófico –, Kardec assevera que a doutrina espírita não deve ser assim denominada, no sentido tradicional do termo. Isso porque a palavra religião está associada, na opinião pública, à ideia de culto, hierarquias sacerdotais e cerimônias, práticas estas que o Espiritismo não possuí.
Para Kardec, portanto, o Espiritismo não é uma religião – no sentido tradicional do termo.
Em suma, com base no pensamento exímio do codificador, podemos dizer que o único ponto em que o Espiritismo poderia se assemelhar a religião é no quesito filosófico, simbolizando a conexão que liga os indivíduos numa comunhão de sentimentos. Para os espiritistas este elo (que liga os homens em um mesmo sentimento) é a caridade para com todos, isto é, o amor ao próximo (seja encarnado ou desencarnado).
No entanto, o Espiritismo no cenário brasileiro, além de ser uma doutrina filosófica, moral e científica, é também visto, por influência da tradição cultural e popular, como uma religião – no sentido usual da palavra –, devido à predominância da ideia de culto presente no país. Basta perguntar a um espírita qual é a sua religião, e ele prontamente responderá: Sou espírita!
ALTARES EM CENTROS ESPÍRITAS
Também é costume, em alguns centros espíritas, encontrarmos altares dedicados a Jesus Cristo, Bezerra de Menezes, Chico Xavier e Kardec, ornamentados através de imagens de gesso ou resina, quadros, pinturas, banners... Em tantos outros também é comum a inclusão de imagens de Maria de Nazaré e outros seres admiráveis – como os santos da igreja católica – que deixaram seu legado pela Terra.
Do ponto de vista sociológico, podemos enxergar essa ação como reflexo de uma herança religiosa, visto que muitos dos adeptos do espiritismo – na atualidade – são ex-católicos, trazendo arraigados para sua nova crença (o Espiritismo), antigos costumes e práticas; o que promove, mesmo sem intenção, um processo de sincretismo religioso (unindo a doutrina espírita com outras vertentes filosóficas e religiosas).
Da mesma forma que a umbanda, o candomblé e o santo daime, a doutrina espírita, sem dúvidas, também passou por esse processo sincrético, assumindo uma característica religiosa – no sentido comum do termo – nas terras do Cruzeiro do Sul.
A este respeito, já é possível encontrarmos o termo espiritismo à brasileira sendo usado – por autores e pesquisadores do tema – para diferenciar os centros, federações e demais instituições, que introduziram ideias adversas, por vezes, combatidas por Kardec, dentro do movimento espírita no Brasil, das demais organizações espiritistas que prezam pela pureza doutrinária das obras de Kardec, buscando seguir o modus operandi, ou melhor, o método científico (Controle Universal do Ensino dos Espíritos) usado e ensinado pelo codificador.
ALTAR NO AMBIENTE DOMÉSTICO
Desse modo, é fácil compreender o porquê da existência de tantos altares nos lares dos adeptos do espiritismo, assim como, nas próprias casas espíritas.
Seja na residência doméstica ou no centro espírita, o altar – ou outros símbolos religiosos, como imagens de gesso ou resina – possui um propósito específico para o espírita: além de fazer parte da decoração do ambiente, também cumpre a função de direcionar o pensamento do devoto.
Para melhor compreensão, ao visualizarmos uma imagem de uma entidade à qual somos devotos, imediatamente trazemos à mente suas lembranças, exemplos e ensinamentos deixados em favor da humanidade. Isso muitas vezes nos ajuda a voltar ao momento presente, a exercer a vigilância, a cultivar a nossa fé, dando-nos força e discernimento diante dos obstáculos da vida.
Dentre as personalidades espíritas que conservaram o costume de possuir um altar em sua residência, destacamos a figura de Chico Xavier. Ainda hoje, em sua antiga residência na cidade de Uberaba (MG), atualmente transformada em um memorial (Casa de Memórias e Lembranças de Chico Xavier), é possível encontrarmos um altar dedicado a variados santos católicos, além de terços e outros objetos que fizeram parte da sua trajetória.
O QUE DIZ KARDEC?
É importante observarmos que, nos casos acima citados, os objetos que compõe o altar dos espiritistas não são considerados ou tidos como mágicos ou sagrados por seus respectivos donos. Também não possuem nenhuma função espiritual, a exemplo da realização de milagres, muito menos, destinam-se à adoração ou veneração de nenhuma espécie. Não se trata, nesse contexto, de amuletos ou quaisquer outros objetos tidos como sobrenaturais.
Em sua maioria, são apenas parte da decoração (não esqueçamos da simplicidade que o Espiritismo traz em sua essência) do centro ou do próprio lar doméstico, como também, um ponto de foco que pode vir a ajudar o espiritista a voltar ou direcionar seu pensamento em um momento oportuno.
A respeito dos amuletos ou objetos mágicos, vejamos o que diz Kardec na questão 554 de O Livro dos Espíritos:
Aquele que, com ou sem razão, confia naquilo a que chama virtude de um talismã, não pode, por essa mesma confiança, atrair um Espírito? Porque então é o pensamento que age; o talismã não é um signo que ajuda a dirigir o pensamento?
Resposta dos Espíritos:
Isso é verdade; mas a natureza do Espírito atraído depende da natureza da intenção e da elevação dos sentimentos. Ora, é difícil que aquele que é tão simplório para crer na virtude de um talismã não tenha um objetivo mais material do que moral. Qualquer que seja o caso, isso indica estreiteza e fraqueza de ideias, que dão azo aos Espíritos imperfeitos e zombadores.
Em outras palavras, a fé em amuletos ou objetos materiais pode influenciar nossos pensamentos e, consequentemente, atrair Espíritos de diversas estirpes. No entanto, a natureza do Espírito atraído (seja bom ou mau) dependerá dos nossos próprios pensamentos e intenções. Se a pessoa tem uma visão simplista e materialista, é provável que atraia espíritos menos elevados e até zombadores.
Vivemos em um país onde o sincretismo é marcante, especialmente nas religiões e doutrinas. O brasileiro é, sem dúvida, um ser religioso. Porém, o espiritista que verdadeiramente estudou e busca compreender os ensinos dos Espíritos, em especial O Livro dos Espíritos, entende que os objetos nos altares ou usados pelos devotos (como pulseiras, escapulários e pingentes) não possuem nenhum poder espiritual ou sobrenatural. Esses objetos não protegem, não se destinam a limpeza do lar ou do sujeito, nem cumprem qualquer outra função nesse sentido.
CONCLUSÃO
Seja pela influência de sua antiga crença ou qualquer outra necessidade, é lícito ao médium espírita manter ou cultivar um altar em sua residência! O mesmo é válido para os demais adeptos ou trabalhadores espíritas. Claro, desde que atente para o bom senso, para a lógica e a fé raciocinada, buscando compreender que, muito mais do que a beleza do altar ou os objetos que lhe ornamenta, será sempre a pureza de intenção, juntamente a vontade e a firmeza do pensamento, que fará alguma diferença na forma como a fé será professada e quais tipos de Espíritos estarão sendo atraídos por meio dessa ação.
Cada um é livre para professar sua fé como bem entender, de acordo com suas necessidades e capacidade de entendimento. O Espiritismo não impõe barreiras, nem regras rígidas de conduta, porém, incentiva constantemente o estudo e a instrução, o amor ao próximo e a transformação moral, deixando a cada um a liberdade de seguir seu próprio caminho.
Sabendo que tais objetos são apenas acessórios, enfeites ou símbolos – e o que realmente importa é a elevação dos pensamentos e as intenções nobres –, nada impede o espiritista de ter seu altar ou local de oração no seu ambiente doméstico.
Mas antes que alguém indague se essa prática seria correta ou não, vejamos o que diz Kardec na obra O Espiritismo em sua mais simples expressão:
"Aos que lhe perguntam se fazem bem em seguir tal ou tal prática, ele responde: Se credes que vossa consciência o solicita a fazê-lo, fazei-o: Deus leva sempre em conta a intenção.
Também é importante relembrar, conforme afirma Kardec na questão 554 de O Livro dos Espíritos, que a intenção, seja ela materialista ou moral, influencia o tipo de espírito atraído. Da mesma forma, a confiança na virtude de um talismã ou outros objetos materiais geralmente reflete uma mentalidade simplória e materialista, tornando a pessoa mais suscetível a espíritos imperfeitos e zombeteiros.
Assim também, já referenciamos aqui por algumas vezes, as chamadas casas mistas ou universalistas, que mesclam o espiritismo com outras vertentes mediúnicas. Geralmente, as casas espíritas que costumam manter em seu interior a presença de um altar (com imagens, velas, búzios, rosas, etc.) são, mesmo que não percebam diretamente isso, pertencentes às casas mistas. Ou seja, elas estão mais para uma casa universalista (com um sincretismo acentuado) do que para um centro espírita propriamente kardecista. (sobre o uso do termo kardecista, vide questão 44).
Por fim, ao espírita de modo particular, é sempre necessário estar atento ao seu modo de proceder, evitando misticismos ou práticas que fogem a fé raciocinada, a razão, o bom senso, a vigilância e a prudência.
Quanto ao fato do sincretismo religioso dentro do movimento espírita brasileiro, há duas correntes de pensamento em destaque.
Os que se consideram puristas ou kardecistas, e os que são partidários do espiritismo à brasileira.
Aos primeiros (kardecistas), o espiritismo é uma religião apenas em seu sentido filosófico, como concluiu o codificador. Para os kardecistas, a análise racional diante dos ensinos dos Espíritos é sempre posta em prática antes de aceitar quaisquer conceitos, independentemente do nome (do espírito, médium ou autor) que assine a obra.
A estes últimos (espiritismo à brasileira), o espiritismo tem um caráter mais sincrético ou de revelação divina (variando de centro para centro), no qual passa a ser uma religião — na acepção mais comum do termo. A estes, as orientações de Kardec ficam sempre em segundo plano, o que reforça, mesmo que inconscientemente, a implantação de dogmas ou verdades absolutas e incontestáveis (ficando o controle universal do ensino dos Espíritos, ensinado e usado por Kardec no desenvolvimento de suas obras, de lado).
Texto extraído do livro Mediunidade com Kardec de Patrick Lima.
Capítulo 4: O Médium e a Casa Espírita
Pergunta 46: O Espiritismo é uma religião? É comum médiuns espíritas terem altares em casa?
Como citar: LIMA, Patrick. Mediunidade com Kardec. Poverello Edições, 2023. 1ª ed.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KARDEC, Allan. Revista Espírita – Jornal de estudos psicológicos – junho de 1868. Tradução de Julio Abreu Filho. Edicel Editora; 4ª edição, março de 2020.
KARDEC, Allan. O espiritismo na sua expressão mais simples. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 3ª edição. FEB Editora, 2019.
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